Tecendo nossas histórias para guardar na memória

Tecendo nossas histórias para guardar na memória

Nós contamos a nossa história? Ao menos buscamos saber a nossa própria história? Estamos interessados pela histórias dos outros? É compreensível que, com a correria do cotidiano e a necessidade de tudo ser para o agora, com um imediatismo que nos sufoca, caímos no erro de achar que realmente “o passado é uma roupa que não nos serve mais”, com diz a música. “O que passou, passou.” “O que fiz durante o dia? O importante é o que farei amanhã.” Registrar nossa história no tempo, seja pela oralidade ou até mesmo com palavras no papel (ou em tweets), é um passo poderoso para alimentar em nós o sentido de pertença a uma família, a uma sociedade, a um povo de fé.

Tecendo histórias – as nossas e as dos outros – construimos o lindo tecido do qual podemos nos revestir, porque Deus se fez e se faz história e, Seu Filho tornado-se também homem, fez com que toda história humana seja também divina.

Neste ano, para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, sempre celebrado na Solenidade da Ascensão do Senhor, em 2020 no dia 24 de maio, o Papa Francisco nos provoca com a mensagem “‘Para que possas contar e fixar na memória’ (Ex 10, 2). A vida faz-se história”.

A mensagem, tradicionalmente, é publicada todos os anos no dia 24 de janeiro, dia que a Igreja faz memória de São Francisco de Salles, padroeiro dos jornalistas e escritores. O Dia Mundial das Comunicações Sociais é a única data inserida no calendário da Igreja durante o Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), convocado pelo Papa São João XXIII e concluído no pontificado do Papa São Paulo VI.

Muito além de uma mensagem aos profissionais da área da comunicação, seja para jornalistas, publicitários entre outros, é uma provocação a todos nós, que somos por essência comunicação. Seja por palavras, gestos ou até mesmo silêncio, porque tudo é um testemunho de quem somos.

Papa Francisco e a escolha do tema deste ano

Já no pontificado do Papa Francisco, os temas das mensagens foram sobre o encontro, a misericórdia, as fake news, a esperança… O Santo Padre nos alerta e convoca a uma comunicação “além fronteiras”.

“Desejo dedicar a Mensagem deste ano ao tema da narração, pois, para não nos perdermos, penso que precisamos de respirar a verdade das histórias boas: histórias que edifiquem, e não as que destruam; histórias que ajudem a reencontrar as raízes e a força para prosseguirmos juntos. Na confusão das vozes e mensagens que nos rodeiam, temos necessidade duma narração humana, que nos fale de nós mesmos e da beleza que nos habita; uma narração que saiba olhar o mundo e os acontecimentos com ternura, conte a nossa participação num tecido vivo, revele o entrançado dos fios pelos quais estamos ligados uns aos outros”, explica do Papa Francisco no início da mensagem.

O título, tirado do livro do Êxodo, fala sobre esta narrativa fundamental entre Deus e a história de seu povo, que escravizado, clamava. “’Deus recordou-Se da sua aliança com Abraão, Isaac e Jacob. Deus viu os filhos de Israel e reconheceu-os’ (Ex 2, 24-25). Da memória de Deus brota a libertação da opressão, que se verifica através de sinais e prodígios. E aqui o Senhor dá a Moisés o sentido de todos estes sinais: ‘Para que possas contar e fixar na memória do teu filho e do filho do teu filho (…) os meus sinais que Eu realizei no meio deles. E vós conhecereis que Eu sou o Senhor’ (Ex 10, 2). A experiência do Êxodo ensina-nos que o conhecimento de Deus se transmite sobretudo contando, de geração em geração, como Ele continua a tornar-Se presente. O Deus da vida comunica-Se, narrando a vida”, reflete o Santo Padre.

Esta questão é de grande preocupação para o Papa Francisco. No livro “Deus é Jovem”, o Santo Padre disse que os jovens de hoje estão crescendo em uma sociedade sem raízes. “O que o senhor entende por uma sociedade desenraizada?”, perguntou o jornalista na conversa que deu origem ao livro. A resposta nos provoca: “Quero dizer, uma sociedade composta por pessoas, famílias, que estão pouco a pouco perdendo seus laços, aquele tecido vital tão importante para sentirem-se parte uns dos outros, participantes com outros de um projeto comum, e comum no sentido mais amplo da palavra. Uma sociedade é enraizada quando está consciente de pertencer a uma mesma história e aos outros, no significado mais nobre do termo”. (Francisco. “Deus é jovem: uma conversa com Thomas Leoncini”; tradução de Pe. João Carlos Almeida. São Paulo: Planeta do Brasil, 2018).

Conhecer as raízes

Quando a jovem Deborah Zocchio se colocou à frente de um edifício na Via dei Coronari, em Roma, durante uma viagem, não conseguiu conter as lágrimas. Naquela casa, há tantos e tantos anos, morou sua “nonna”, que migrou para o Brasil por razões políticas. A jovem tirou uma foto da casa e enviou para o pai, que ansioso aguardava no Brasil.

Deborah com a mãe e o irmão: a história da família é a raiz do que somos

“Naquele momento, lembrei de tudo o que meu pai falava dela. Das caminhadas a pé até a missa na Basílica de São Pedro, da sua saudade da terra natal… Não tive o prazer de conviver com ela, que faleceu antes do meu nascimento, mas – naquele momento em especial – trouxe na memória todas as histórias que meu pai me contou sobre ela. Senti a presença e as raízes que me sustentam enquanto família. Aquele prédio era um pouco também a minha história e daqueles que ainda virão. Agradeci muito por estar lá e pela história da minha vó, que com certeza contarei aos meus filhos, que poderão também passá-la de geração em geração”, conta.

A convivência com os mais velhos realmente merece destaque. As suas palavras e presença ajudam todos – crianças e jovem, em especial – a reconhecer que a história não começa com eles, que são herdeiras de um longo caminho, que deve ser respeitado e valorizado. “Quem quebra os laços com a história terá dificuldade em tecer relações estáveis e reconhecer que não é o dono da realidade. A falta de memória histórica é um defeito grave da nossa sociedade”, diz o Papa Francisco na Exortação Pós- Sinodal “Amoris Laetitia – Sobre o amor na família”.

A história nos deixa mais próximos

Em tempos de distanciamento por conta da pandemia do coronavírus, estar “preso” em casa com os familiares pode ser uma oportunidade propícia para compartilhar histórias, seja da família, do cotidiano, das aventuras, de histórias de fé. A quarentena, em seu aspecto positivo, possibilitou um maior diálogo entre marido e esposa, entre irmãos, entre filhos e pais. O conversar – que pode parecer atividade normal – ganhou novo sentido para contarmos a nossa história.

O ser humano é um ser narrador e tem necessidade de narrar-se a si mesmo, de tecer histórias, cuidar delas. Assim aconteceu, por exemplo, com a “História das histórias”, a Sagrada Escritura. Se hoje podemos saber a história de tantos profetas, pessoas tocadas por Deus, é graças a esta necessidade humana de contar história. O Antigo Testamento é recheado delas. E os próprios Evangelhos são narrações.

O início do Evangelho segundo Lucas nos traz: “Muitas pessoas já tentaram escrever a história dos acontecimentos que se passaram entre nós. Elas começaram do que nos foi transmitido por aqueles que, desde o princípio, foram testemunhas ocultas e ministros da palavra. Assim sendo, após fazer um estudo cuidadoso de tudo o que aconteceu desde o princípio, também decidi escrever para você uma narração bem ordenada, excelentíssimo Teófilo. Desde modo, você poderá verificar a solidez dos ensinamentos que recebeu”. (Lc 1,1-4)

Verificar. Estudo cuidadoso. Como nem todas as histórias são boas, frequentemente somos bombardeados por narrações inverídicas, utilizadas para discursos banais e falsamente persuasivos, que proclamam ódio ou estão alinhadas à busca do poder. Elas, porém, têm vida curta. Uma história boa, ao contrário, é capaz de transpor espaço e tempo, permanecendo atual.

“O próprio Jesus falava de Deus, não com discursos abstratos, mas com as parábolas, breves narrativas tiradas da vida de todos os dias. Aqui a vida faz-se história e depois, para o ouvinte, a história faz-se vida: tal narração entra na vida de quem a escuta e transforma-a”, diz o Papa Francisco.

“Mas para quem contar a nossa história? Parece tão insignificante!” Basta contar para Deus, que mesmo sabendo de tudo, nunca deixa de nos ouvir com fidelidade e atenção.  E podemos contar mais uma vez, porque mesmo para os mesmos fatos sempre mudamos o sentido e a perspectiva, como uma nova forma de olhar.

O seminarista Fabricio e sua família. Ouvir a história de uma religiosa ajudou em sua vocação

É assim que o jovem Fabrício Fagner Ferreira, seminarista na Diocese de Amparo (SP), gosta de conversar com Deus, contando a descoberta de sua vocação. Quando trabalhava como um jovem aprendiz na Santa Casa de Misericórdia da sua cidade, convivendo com uma religiosa que lá também trabalhava, sentiu a voz de Deus através das conversas com ela, que contava a sua história. “Ah, meu Senhor, como meu coração se enche de alegria em olhar para traz e ver os seus grandes feitos em minha vida! Quantos momentos, quantas histórias que já vivemos e que para sempre ficarão na minha memória”.

Para contar a nossa própria história não é necessário sermos herói, estarmos nos quadrinhos ou nas prateleiras das melhores livrarias. Basta nos permitir. Qual é a sua história?

Por Adilson Jorge, da redação do Jovens Conectados

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