ARTIGO: A Consciência Negra na ótica cristã

ARTIGO: A Consciência Negra na ótica cristã

É de conhecimento popular que o feriado do dia 20 de novembro no Brasil, Dia da Consciência Negra, dá-se por causa de uma homenagem a Zumbi dos Palmares, um quilombo que, segundo a história aprendida na escola, lutou pela liberdade dos negros e tornou-se símbolo da luta contra o racismo no Brasil, morrendo nessa data em uma guerrilha com os bandeirantes.

Apesar de ter tantos outros pormenores desconsiderados nessa história, não podemos contestar que nossos escravos sofreram muito.  Não porque eram negros e por isso desprovidos de voz e de vez, mas por uma condição lastimável de egoísmo, orgulho, maldade, divisão e corrupção humana, que marcou não só nossa cultura, mas cada nação com suas mazelas históricas, independente de raça. O sofrimento e violência humana são fruto de um desvio do coração do homem do amor de Deus e de todas as virtudes às quais é convidado a viver.

Nós, brasileiros, somos um povo miscigenado, caracterizado por boas misturas de povos, que não só sinalizaram nosso tom de pele, mas a nossa maneira de ser, nossos gostos e comidas, nossa cultura de um modo geral. A maior parte do nosso povo é afrodescendente, mesmo quando nossa pele e traços não aparentam. As dores do nosso povo vão muito além de nossa origem racial e cultural.

Levantar uma nação inteira a despertar para a valorização de um povo, muito querido e marcante no nosso país, contém uma tentativa de diminuir tanto preconceito que ainda existe, mas pode também conduzir-nos a sair do foco do Evangelho, do amor pregado por Jesus, reforçando o preconceito e nos fazendo trilhar um caminho de maior divisão.

Considerando que o racismo é caracterizado “por um sistema que estabelece a exaltação de uma raça em detrimento da outra”[1] e que Deus nos chama a não fazermos acepção de pessoas (cf. At 10,34/ Rm 2,11), como cristãos somos chamados a um olhar mais elevado a respeito desse tema. Somos membros do mesmo corpo, como nos diz São Paulo, portanto tendo todas as partes sua devida importância e cooperando uns com os outros:

“Pois assim, como num só corpo temos muitos membros, e os membros não têm todos a mesma função, de modo análogo, nós somos muitos e formamos um só corpo em Cristo, sendo membros uns dos outros.”[2]   

Temos duas alternativas: Podemos olhar para essa data comemorada, como irmãos em Cristo, reconhecendo a beleza nas nossas particularidades e diferenças que nos tornam complementares. Ou podemos escolher de fixar-nos na necessidade de evidenciar um povo em detrimento do outro. Além disso, corre-se o risco de confundir o que é individual em nós, com o que é próprio de um povo. Isso seria também injusto e diminuiria o valor particular que temos, como filhos de um mesmo Pai.

Perante o contexto atual, o Papa Francisco nos alerta quanto ao uso de ideologias aparentemente antirracistas e antixenofóbicas para interesses políticos: “Infelizmente algumas vertentes políticas cedem à tentação de instrumentalizar sentimentos populares para ‘míopes interesses eleitorais’.”[3]  

 Jesus nos ensina um caminho concreto para vivermos a nossa individualidade, pertencendo ao mesmo Corpo, apresentando quem são aqueles que fazem parte de sua família e de sua intimidade: “aqui estão minha mãe e meus irmãos, porque aquele que fizer a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, irmã e mãe.”(Mt 12,49b-50).

E podemos nos perguntar nesse caso: o que é a vontade de Deus? Dentre tantos caminhos que Ele nos aponta, o maior de todos é vivermos em amor uns com os outros. O amor vai além de apenas tolerar as diferenças ou de uma supervalorização superficial daquilo que diante de Deus já tem seu valor particular. O amor nos torna capazes de enxergar no outro um irmão em Cristo, como nos ressalta o Papa Francisco:

“Os cristãos têm uma responsabilidade a mais em combater as novas formas de xenofobia e racismo, em razão de sua própria natureza. O outro, de fato, não é somente um ser a respeitar em virtude de sua intrínseca dignidade, mas sobretudo um irmão ou uma irmã a amar. Em Cristo, a tolerância se transforma em amor fraterno, em ternura, em solidariedade operativa.”[4]

Foi assim que Maria acolheu a humanidade inteira, à pedido de Seu Filho, na figura de João, aos pés da Cruz. Com esse gesto, Ela reúne todos os filhos de Deus, independente da etnia, como irmãos, em uma só família.

Podemos lembrar aqui duas imagens de Maria que são muito caras para nossa Igreja. A primeira delas é Maria, como Mãe de Todos os Povos, que junta em Seu regaço as dores e alegrias de cada nação, intercedendo e auxiliando na unidade dos Seus filhos. A outra imagem a ser ressaltada é a nossa tão querida Mãe Aparecida, que trazendo os traços do nosso povo, aproxima de si e, assim, de Deus, cada filho dessa nação, levando consigo os nossos clamores.

Como terna e boa mãe, Maria não deseja ver seus filhos divididos e segmentados por suas diferenças, uma vez que o Seu olhar é amoroso para com todos, sem exceção. Alegremos, então, o coração de Maria e de Seu Filho, unindo-nos e comprometendo-nos a uma vida de comunhão e de mais amor uns com os outros.

por Comunidade Aliança de Misericórdia.

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[1] Dicionário Online de Português- dicio.com.br

[2] Rm 12,4s Bíblia de Jerusalém.

[3] Conferência mundial sobre o tema “xenofobia, racismo e nacionalismo populista no contexto das migrações mundiais. Papa Francisco, 2018.

[4] Idem

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