O que restou para a família de Simone foi uma foto, a sensação de impotência e impunidade, além do vazio eterno ocasionado pela saudade. A jovem de 23 anos deixou o Brasil em busca de melhores condições de vida na Espanha. Aliciada por uma quadrilha que trafica mulheres para fins sexuais, Simone morreu misteriosamente no país desconhecido, apenas três meses após sua chegada. Até hoje, os pais buscam explicações para o fato e dizem que nunca mais foram os mesmos desde o falecimento precoce da filha.
Simone faz parte da obscura estatística, que não possui números precisos para medir a quantidade de seres humanos vendidos e explorados como animais fora do país. Os ativistas na luta contra essa realidade, como o bispo de Marajó (PA), Dom José Luiz Azcona Hermoso, afirmam que isso acontece porque as quadrilhas de traficantes são grupos tolerados pela sociedade por seu alto poder econômico e a capacidade de eliminar aqueles que as denunciam.
De acordo com a Organização das Nações Unidas, o tráfico de pessoas para exploração sexual é a terceira maior fonte de renda ilegal no mundo, movimentando em torno de 32 bilhões de dólares por ano. Estima-se que, por ano, quase um milhão de pessoas são traficadas, das quais 98% são mulheres. O Brasil lidera o vergonhoso ranking dos maiores exportadores de mulheres, com 85 mil vítimas.
O estado de Goiás figura como um dos campeões nacionais no tráfico de pessoas, sobretudo mulheres. Para o membro do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP), o juiz Rinaldo Aparecido Barros, muitos aspectos contribuem para a liderança do estado, entre eles, a beleza da mulher goiana, que é a mão de obra predileta e prioritária para os traficantes, os quais fazem falsas promessas de emprego como babás e modelos e até mesmo apresentam a prostituição como uma oportunidade mágica de enriquecimento.
O juiz afirma que o tráfico de mulheres costuma ser mais vantajoso para um criminoso que o tráfico de drogas, uma vez que a mulher explorada não é descartável e pode ser reutilizada por meio de diversas vendas, sendo esse ciclo encerrado apenas com a morte ou o enlouquecimento da vítima.
Mulheres de vida nada fácil
Entre promessas de despesas pagas, emprego garantido e muitos sonhos de uma vida melhor, as vítimas do tráfico internacional de pessoas, têm como destinos mais frequentes Espanha, Suíça e Portugal.
Ao chegar no país de destino, a realidade é totalmente diferente daquela prometida pelos aliciadores. As mulheres se endividam com o traficante, que lhes cobra o valor da passagem e da hospedagem, e exigem uma porcentagem dos muitos programas que são obrigadas a realizar. Eles também cerceam sua liberdade, retendo o passaporte e não permitindo que elas transitem livremente pela rua nem falem ao telefone sem monitoramento.
Nas senzalas do século XXI, as escravas sexuais são algemadas às crescentes e impagáveis dívidas impostas pelos “barões do tráfico”, que tornam a alforria um ato praticamente impossível.
A situação se torna ainda pior com as inúmeras pequenas regras que regem o serviço e que geram multas se forem infringidas. Os mais variados motivos geram penas financeiras absurdas, como uso de tênis. Nos prostíbulos onde são essas mulheres escravizadas, não se pode descer dos quartos de sandália, nem deitar no balcão ou passar da hora; é proibido ir à rua com roupas curtas; as atividades exploratórias sempre devem começar em horário determinado. Quem infringe essas normas paga multa. As mulheres também pagam multa quando recusam um cliente. Ou seja, é praticamente impossível se libertar desse cativeiro e para conseguir dar conta das “regras” e aguentar essa vida, muitas dessas mulheres se veem obrigadas a fazer uso de drogas.
As mentiras que os aliciadores contam
De acordo com a titular da Delegacia de Defesa Institucional da Polícia Federal, Marcela Rodrigues, o aliciador (ou aliciadora) geralmente aborda as jovens oferecendo trabalho no exterior ressaltando sua beleza, suas características corporais e a facilidade para ganhar dinheiro. “Elas sabem dos desejos e das dificuldades dessas jovens e sabe convencê-las porque apresentam sua própria trajetória como vitoriosa. E, ainda, ressaltam a superioridade da mulher brasileira em relação às européias no que concerne à sexualidade e que seriam as preferidas dos homens estrangeiros. Esse discurso casino está todo baseado na subalternidade e na condição heterônoma da mulher”, destaca.
Por incrível que pareça, comumente o aliciador é uma pessoa próxima, e possui com a vítima, relações que envolvem afetividade. Para a psicóloga Cíntia Maia, da Diretoria de Políticas Públicas para as Mulheres, como já há um vínculo com o aliciador, existe um maior respaldo na hora do convencimento, que envolve promessas de uma vida farta e dinheiro em abundancia.
Vislumbradas com essas possibilidades elas encaram tais propostas, como uma oportunidade de enriquecimento. Dados da Polícia Federal apontam que as mulheres aliciadas, são em maioria, jovens de baixa renda, entre 18 e 30 anos. Muitas são mães solteiras, responsáveis pelo sustento de seus familiares.
Segundo Nelma Pontes, do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP), a prostituição pode ser até uma opção pessoal, mas é preciso desconfiar do oferecimento de muitas vantagens. “Para vencer na vida, não existem facilidades demais, é preciso desconfiar dessas propostas muito boas. Se a pessoa fizer uma conta matemática, o custo de vida lá é muito mais alto e para ter o mesmo padrão de vida daqui a pessoa precisa se desdobrar. Ninguém é muito bonzinho para te ajudar na a ganhar na loteria”, alerta.
Combate ao crime enfrenta desafios
A desarticulação das redes de tráfico humano é uma atitude arriscada e extremante difícil. De acordo com o bispo de Marajó, Dom Azcona, a atividade conta com a conivência de políticos e pessoas influentes, além de estar intimamente atrelada ao narcotráfico, ao tráfico de armas e à exploração sexual de menores.
A delegada Marcela Rodrigues também expõe a dificuldade de desarticulação por conseqüência das próprias vítimas, pois há uma grande dificuldade para efetuarem denúncias e se desvincularem da rede. “A maior dificuldade para desarticular redes de tráfico de mulheres é que as envolvidas têm muitas dificuldades de se perceberem como vítimas, devido ao fato de o aliciador pertencer à sua convivência social; as relações são permeadas por contradições e um desejo muito grande de melhorar de vida, ser independente financeiramente e ajudar a família; e as condições de trabalho das mulheres que atuam no mercado do sexo no Brasil são difíceis e permeadas, também, pela violência”, explica.
Mesmo com as inúmeras dificuldades, já elencadas, muitas mulheres conseguem retornar ao Brasil através de instituições, como a Organização Não Governamental (ONG), “Resgate”, que possui escritórios em diversos países, e como o próprio nome revela, resgata pessoas que vivem em condições desumanas fora do país.
Uma vez, de volta à terra natal, essas mulheres enfrentam grandes dificuldades de readaptação, por conseqüência da história de terror vivida durante o tempo de permanência fora. Além disso, muitas delas adquirem marcas irreversíveis, como as doenças sexualmente transmissíveis e o vício em álcool e drogas.
A diretora de Políticas Públicas para as Mulheres de Goiás, Erondina de Moraes, ressalta que em muitos atendimentos feitos por sua diretoria, a mulher resgatada possui bens, mas não encontra estrutura psicológica e monetária para um recomeço em sua comunidade original. “Elas até têm uma casa organizada, levando as pessoas a pensarem que não há necessidade de apoio, mas o que não se sabe é que essas mulheres não têm como se manter socialmente”, afirma.
A crise econômica na Europa tem prejudicado o tráfico e favorecido o resgate das vítimas. Se antes uma mulher cobrava 100 euros por programa, com a crise foi obrigada a baixar seu preço para 20 euros. Ou seja, a prostituição não está mais tão atrativa como antigamente e essas garotas mal vêm conseguido recursos para a própria sobrevivência. No entanto, o principal foco das entidades de luta contra o tráfico humano continua sendo a educação e o esclarecimento, para que as vítimas não caiam nessa terrível cilada.
Por Maria Amélia Saad