No dia 24 de janeiro, celebramos São Francisco de Sales, bispo e doutor da Igreja, sobre quem há menos de um mês o Papa Francisco escreveu uma Carta Apostólica por ocasião dos 400 anos de sua morte.
Francisco viveu sua juventude como leigo de modo muito virtuoso, mas não sem grandes crises, foi um universitário brilhante e atuou profissionalmente como advogado até que a Divina Providência agiu em seu favor dando a ele os meios para seguir a vocação sacerdotal que ele tanto ansiava. Assim que ordenado, logo foi ser missionário na região de maior domínio e conflito calvinista. Com sua doutrina profunda e boa comunicação manifestadas através da mansidão e da caridade, em menos de cinco anos reverteu a situação e quase toda a população voltou-se para a vivência da fé Católica.
Como padre e depois como bispo, continuou usando suas habilidades diplomáticas e retóricas aprimoradas na Universidade de Pádua e estava constantemente à serviço da Igreja ou das autoridades civis da época. Foi um bispo missionário, catequista – inclusive de um surdo, tendo tido que desenvolver uma linguagem especial para catequizá-lo e atendê-lo em confissão-, formador do clero, restaurador da vida religiosa, fundador da Ordem da Visitação, autor de livros e diretor espiritual de inúmeros leigos – de onde a experiência culminou com o seu best-seller “Filoteia ou Introdução à vida devota”.
O santo foi um colosso de testemunho e de ensinamentos para todo o povo de Deus, não à toa, logo que morreu, uma multidão começo a aclamá-lo e a ele recorrer como santo. Em determinado momento do seu processo de beatificação consta o registro de que apenas ressurreições de mortos foram 37 – trinta e sete! – atestadas tendo acontecido pela intercessão do santo bispo, que em 1877 foi declarado Doutor da Igreja, tamanha sabedoria encontrada em seus escritos.
Uma vida exemplar, obras de grande profundidade doutrinal e espiritual e uma intercessão poderosa! Eis o legado do santo celebrado hoje.
Um pouco de toda a riqueza da vida e ensinamentos do santo bispo de Genebra foi destacada pelo Santo Padre, o bispo de Roma na Carta Totum amoris est (Tudo pertence ao amor), publicada no último dia 28, o dies natalis de Francisco de Sales. Gostaria de destacar alguns pontos dela que penso que podem fazer servir como balizas, como pontos de orientação, para os jovens de hoje.
1. Um Lifestyle
O Papa escreveu: “Assim entendida, a devoção não tem nada de abstrato; antes, é um estilo de vida, um modo de estar no concreto da existência quotidiana” (Papa Francisco, Totum amoris est).
Em sua “Introdução à vida devota” o santo Bispo de Genebra tem a devoção como tema central e ao defini-la, aparecem algumas realidades que até então não eram tratadas na espiritualidade da época. Para Francisco, a devoção é o estilo de vida de quem não se contenta em fazer o bem que deve ser feito, em cumprir os Mandamentos e em não fazer coisas erradas. A devoção é a perfeição da caridade, ela não diz respeito apenas ao fazer o que se deve de bem, mas diz muito sobre o modo como esse bem é realizado.
Nas palavras do Doutor da Igreja: “Se nos dá força e vigor para praticar o bem, assume o nome de caridade. E, se nos faz praticar o bem frequente, pronta e cuidadosamente, chamam-se devoção e atinge então ao maior grau de perfeição… A caridade nos faz observar todos os mandamentos de Deus sem exceção, e a devoção faz com que os observemos com toda a diligência e fervor possíveis.”
Por isso a devoção pode ser tida como um estilo de vida, a pessoa não passará seus dias à deriva, sem rumo, nem tão pouco ancorada, presa, na busca por tão somente cumprir os Mandamentos, a devoção a fará diariamente ter inúmeras oportunidades de, por amor a Deus, buscar a perfeição em cada situação, por menor que seja.
2. Desejo e discernimento, um binômio importante.
Na Carta Apostólica, lemos que o santo “compreendeu a importância de pôr o desejo constantemente à prova, através dum exercício contínuo de discernimento.” Sem ter mais referências sobre a espiritualidade salesiana talvez fique um pouco difícil de compreender o que o Papa quis dizer aí.
A espiritualidade proposta por São Francisco de Sales é toda ela baseada na experiência do amor, inclusive o Papa João Paulo II se referiu a ele como o “Doutor do amor divino”. Para o santo bispo de Genebra, as coisas encontram sentido e se mostram perfeitas na medida em que são motivadas e conduzem a uma experiência de amor a Deus. Não basta fazer o certo e não fazer o errado, a perfeição das ações estará no quanto elas nascem e acontecem a partir de um coração que se move por amor a Deus. Por isso, antes de julgar as ações cotidianas como boas ou más, é necessário perceber se elas nascem e colaboram para a experiência de amor a Deus. Daí o Papa ter afirmado ser uma espiritualidade de “exercício contínuo de discernimento”. Sempre devemos nos perguntar “Estou fazendo isso como fruto do meu amor a Deus?”, “Agindo desta forma estarei crescendo no amor por Deus?”… Muito mais do que o “Fui fiel ao meu horário de oração”, “Deixei de ir em um lugar” ou fiz/deixei de fazer qualquer coisa que seja.
Na mesma frase o Santo Padre diz sobre a importância de colocar o desejo à prova. Um dos capítulos de Filoteia, o best seller salesiano, é dedicado ao tema dos desejos. Para Francisco de Sales os desejos devem ser discernidos junto ao diretor espiritual para que sejam bons e regulados. Sempre achei isso muito interessante, como assim? Desejos não são coisas que brotam naturalmente no nosso coração e nós apenas o seguimos? Não! Os desejos devem ser discernidos, é preciso fazer um caminho de conversão dos nossos desejos, regulá-los, fortalecê-los, direcioná-los até que nos conduzam sempre mais à experiência de amor a Deus.
Com esta chave, fica possível entender e aplicar aquilo que o Doutor da Igreja propõe à Filoteia sobe os temas das amizades, dos divertimentos, dos bailes, das conversas, das riquezas e demais situações cotidianas que devem ser vividas segundo a devoção, com naturalidade e sem afetação.
3. Como Jesus na manjedoura
Por fim, outro princípio salesiano que pode ajudar muito a forjar a vida de modo agradável a Deus é a vivência daquilo que em outras tradições espirituais é chamado de santa indiferença, que São Francisco de Sales inúmeras vezes indicou como um modo louvável de afrontar às situações cotidianas e que foi relembrado pelo Papa em sua carta a partir da citação de sua frase: “Nada pedir e nada recusar”.
Em algumas cartas, o bispo de Genebra completa a sua ideia: nada pedir e nada recusar como o Menino Jesus na manjedoura que aceitou o canto de louvor dos anjos junto aos pastores, bem como a pobreza de nascer num estábulo e repousar num cocho.
Essa experiência nasce e se fortalece na profunda certeza de sermos filhos amados de um Deus que é providente e só quer o nosso bem e salvação. Sendo assim, tudo o que nos acontece está dentro da providência divina para nos fazer mais perfeitos.
Há muito o que ser aprofundado no legado deixado nas obras de São Francisco de Sales para que a vida cotidiana se torne uma mediação da experiência de amor entre Deus e cada pessoa e assim a santidade aconteça.
Que no dia de sua memória litúrgica, 24 de janeiro, nos sintamos convidados ao discipulado de tão sábio mestre de vida espiritual.
São Francisco de Sales, rogai por nós!
Por Maria Teresa R. Rosa (@fstete)
Especialista em Teologia Espiritual – Universidade Pontifícia Salesiana (Roma).