Violência – eles moravam no Brás

Violência – eles moravam no Brás

Coisa parecida acontece com o caso dos seis moradores de rua exterminados no Bairro do Jaçanã, em maio do ano passado, e com tantos outros fatos de violência contra essa parcela da população marginalizada e já tão sofrida. Será que desta vez os culpados vão ser identificados e chamados a prestar contas à Justiça?

A impunidade acaba estimulando mais violência contra os moradores de rua, esquecidos das políticas de segurança pública, desinteressantes para a economia, socialmente invisíveis, talvez até sem documentos, um problema para a limpeza da cidade…

Machucá-los, feri-los, por que não?

Matá-los, qual é o problema? Sua morte nem desperta especial reação na opinião pública.

Mataram mais dois moradores de rua, e daí?!

A Arquidiocese de São Paulo protesta contra esse descaso e manifesta sua solidariedade a todas as vítimas da violência, quaisquer que elas sejam. O Vicariato Episcopal para a Pastoral do Povo da Rua tem a preocupação de oferecer a essa parcela da população em situação de risco a assistência humana, social e religiosa de que necessita; vários grupos cuidam da saúde e da alimentação, outros assumem a sua defesa contra agressões e violências; alguns não hesitam em passar as noites ao relento, nos lugares onde essas pessoas dormem, para protegê-las.

A violência é um dos maiores desafios da sociedade atual, gerando intranquilidade e ameaçando a paz. Ela impregna todo o tecido social e, por vezes, assume contornos de insensível crueldade. Todos os tipos de violência merecem a nossa mais decidida rejeição.

Há a violência, geralmente aceita de forma resignada, das injustiças sociais e econômicas, que negam vida digna a milhões de pessoas; pobreza extrema e miséria absoluta ainda persistem, camufladas pelos dados ufanistas do crescimento econômico nacional. Esta violência dói tanto mais porque golpeia duramente os órfãos do progresso, gente de todas as idades, mas especialmente crianças, não lhes permitindo um pleno desenvolvimento físico, intelectual e social.

Sem esquecer os horrores da guerra, pensemos na violência do crime organizado, nutrida por enormes interesses econômicos vindos do contrabando, do tráfico de drogas e de pessoas. Há também a violência doméstica, nas escolas, nos ambientes de trabalho e no esporte… E ainda as violências “corriqueiras” de todo dia, físicas, psicológicas e morais, que não ganham espaço na mídia. A violência avilta, machuca, amedronta, cerceia a liberdade, intoxica o convívio social, mata, entristece, envergonha!

Não bastasse o quadro assustador da violência, temos de constatar ainda a sua cínica e doentia espetacularização, como forma de garantir audiência, em certos meios de comunicação. Afinal, aonde queremos chegar?

Se a violência é comparável a um tumor, admitamos que a cultura e a sociedade do nosso tempo estão gravemente enfermas, precisam fazer um exame crítico rigoroso dos fatos e submeter-se a sérias terapias…

As diversas formas de violência desafiam as autoridades para uma ampla reflexão sobre o seu significado político e para a promoção de medidas preventivas capazes de coibir e punir os atos violentos e de promover um convívio respeitoso e pacífico. Há uma justa preocupação pela promoção do progresso econômico e para que o bem-estar chegue a todos. Mas, pergunto, onde estão as políticas de incentivo à formação humana, ética e cidadã? Cuidamos da economia e descuidamos das pessoas! Onde estão as iniciativas para um saneamento da cultura da violência e para a afirmação dos princípios básicos da dignidade humana e dos seus direitos mais elementares? Pode-se matar uma pessoa, morador de rua ou quem quer que seja, como se mataria uma barata?

Mas não basta a ação preventiva ou repressiva do Estado: toda a sociedade precisa fazer a sua parte. Violentos prosperam onde o ambiente lhes é propício… Há um vazio, ou a falta de afirmação de valores essenciais para o convívio social na cultura contemporânea; o individualismo subjetivista reinante privatizou os parâmetros da civilidade e da conduta pessoal e favorece a explosão da violência, como forma de relação social. A civilização perde e retrocede toda vez que a violência consegue impregnar a cultura, qual tumor maligno.

Penso que caberia um pacto contra a violência que começasse pela educação das crianças no lar e na escola e passasse por várias iniciativas comunitárias, como a campanha pelo desarmamento, as manifestações públicas de desaprovação dos fatos e espetáculos de violência e a educação para o diálogo, o respeito pela ética e pela dignidade humana.

Ninguém está livre da violência por habitar em condomínios fechados, vigiados, atrás de altas grades diante da casa e de cercas eletrificadas… Para não ser a próxima vítima cada um deve tornar-se um educador para a paz e participante de um grande mutirão para acordar as consciências, empenhado na rejeição de toda forma de violência.

 Cardeal Dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo

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